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ETNOGRAFIA DE CHANCHADA - A intelectualidade "divinizada" mais parecem universitários de comédia, que veem o povo como se este fosse o personagem de Brendan Fraser em 'O Homem da Califórnia'.
Por Alexandre Figueiredo
A impressão que temos é que a visão dominante sobre cultura popular no Brasil mais parece a de uma "etnografia de chanchada", em que a relativa pouca idade de nossos antropólogos, sociólogos, historiadores e mesmo jornalistas culturais faz com que a compreensão de cultura das periferias seja, no mínimo, risível e estereotipada.
Me lembra muito do caso do filme de comédia O Homem da Califórnia (Encino Man), quando dois estudantes universitários encontram um fóssil de um homem pré-histórico e o adaptam à moda juvenil da época. Vestem-no com roupas transadas, levam-no para festas e coisa e tal. Transformam o homem das cavernas num estereótipo "sarado" e "modernoso".
E, a título de "rompermos com nossos preconceitos", é justamente isso que fazem nossos intelectuais menos críticos, porém muito mais influentes e dotados da maior visibilidade possível e, com toda a formação neoliberal latente em suas ideias, ainda tentam se alinhar ideologicamente à esquerda, por mais que seus pontos de vista sejam explicitamente corroborados pela Rede Globo e pela Folha de São Paulo.
Sem uma vivência real sobre o que é mesmo "o outro", no caso a periferia, ou mesmo sobre as populações indígenas - que durante muito tempo eram a "ralé" segundo o preconceito social vigente até meados do século passado - , nossa intelligentzia festiva prefere brincar de etnografia e acha que o "povão" transformado em estereótipo pela indústria cultural é a "moderna civilidade índia-negra-branca das periferias".
E isso é estarrecedor, na medida em que, em nosso país, era preciso que um estrangeiro como o antropólogo franco-belga Claude Levi-Strauss redescobrisse as populações indígenas para que o "secular" preconceito contra os índios e expresso no modo etnocêntrico de ver o outro começasse a ser neutralizado.
E olha que havíamos os alertas dos modernistas sobre a importância de vermos nossos antigos mestres, porque as populações indígenas eram os moradores mais antigos do Brasil, e muito do nosso vocabulário e dos valores sócio-culturais modernos - até mesmo a nossa pipoquinha do dia a dia - é herdada das antigas tribos indígenas.
IDEALIZAÇÃO DISFARÇADA
Só que o modo de ver o outro com preconceito não se dá somente pela rejeição. Se dá, acima de tudo e com muito mais frequência, com um aparente apoio, até com certo entusiasmo. Pois o modo de "aceitar o outro" com entusiasmo não significa necessariamente que se estabeleça uma ruptura vitoriosa contra o preconceito. Muitas vezes essa "adoração do outro" esconde preconceitos piores do que a própria rejeição.
O caso do "funk carioca" e de outros fenômenos da "cultura popular" midiática sinalizam isso. A defesa dada a eles esconde preconceitos piores do que a rejeição que outros críticos faziam aos mesmos.
Primeiro, porque são fenômenos meramente comerciais, condicionados pela persuasão da velha grande mídia. Muitos desses ídolos, independente da forma como eles surgiram, foram moldados ou remoldados pelo mercado, pelo tendenciosismo dos modismos, pelos valores "enlatados" e "manufaturados" pela velha mídia.
Mas a intelectualidade "divinizada" tenta ver nesses modismos de mercado a "verdadeira cultura popular". Clama ela que essa visão "rompe" com antigos preconceitos. Talvez, mas ela não deixa de criar outros.
Afinal, como modismos de mercado, muitos desses ritmos são na verdade decididos e desenvolvidos por um grupo de executivos, e difundidos por outro tanto de executivos, o que mostra que essa "cultura" não passa de mero negócio.
Mas quem é mais novo e cujos referenciais mais antigos se limitam às consultas livrescas e à suada pesquisa bibliográfica que não é emocionalmente vivenciada, mas apenas compreendida em "estado bruto" nas monografias e artigos acadêmicos, não quer saber se o "funk carioca" foi tramado pelos executivos do entretenimento nem como se deu esse processo.
Só que a adoração a esses ritmos - "funk carioca", tecnobrega, "forró eletrônico", brega dos anos 70, só para citar alguns exemplos mais típicos - esconde, nessa intelectualidade, um desejo de idealização da periferia. Por mais "adorada" que a população pobre seja, ela nem por isso deixa de ser vítima de um desejo de idealização por parte dessa intelectualidade influente.
Primeiro, porque essa intelectualidade, ela mesma também amestrada, na infância, pela televisão - localizemos sua infância feliz no tempo e veremos a televisão do "milagre brasileiro" da ditadura militar - , parece inocentar a própria mídia da culpa pela domesticação sócio-cultural das populações pobres.
Afinal, o que são os estereótipos para quem vê na própria realidade estereotipada da televisão a sua própria realidade? Daí o mito da caverna de Platão, do qual nomes como Paulo César Araújo e Pedro Alexandre Sanches são exemplos contemporâneos, e que já mostrava a concepção etnocêntrica da realidade, onde a caverna é "o mundo" e o que está fora dele é "preconceito".
E vemos o quanto muitas comédias, mesmo as comerciais, acabam nos ensinando sobre a realidade. Entusiasmados como o espetáculo do "funk carioca", tecnobrega, "forró eletrônico", "pagodão baiano" etc, os intelectuais querem travestir o povo pobre com a vestimenta estereotipada do pop estrangeiro, colocar bonés e camisetas de marca nos pobres e colocá-los num consumo de entretenimento que a intelectualidade não sabe ser subproduto dos executivos da mídia.
Os intelectuais etnocêntricos, então, lembram os antigos portugueses dando brindes para os índios em troca de pau-brasil. Ou então remetem àquele verso de uma antiga marchinha: "índio quer apito".
Tudo isso para não dizer que se trata, também, de uma visão elitista que vemos também no conto do "amigo dedicado" de Oscar Wilde, onde a intelectualidade "divinizada" faz o papel do "moleiro" e as periferias são o "jardineiro" em questão. E a pseudo-cultura "popular" de bregas e neo-bregas é o carrinho de mão com defeito que os "moleiros" dão de presente aos "jardineiros".
Tentando se afirmar como os "arautos das periferias" ou "defensores da verdadeiríssima cultura popular", esses intelectuais não passam de fidalgos modernos, que em troca dos antigos baiões, sambas e modinhas tirados do seio das classes populares, lhes deram em troca os "enlatados" culturais do estrangeiro que, através de rádios controladas por oligarquias, são formatadas pelo mercado sob o rótulo tendencioso da "nova cultura popular".
Desse modo, os tão queridos intelectuais etnocêntricos, endeusados pela opinião pública de caráter médio e dotados da mais alta visibilidade, mais parecem os estudantes universitários das comédias estudantis, que, vendo os fósseis de homens das cavernas, querem moldá-los de acordo com sua visão idealizada dos homens primitivos.
E essa intelectualidade ainda tem o descaramento de desmentir que está idealizando o povo pobre. Sua idealização se vê com muita facilidade. É só prestarmos atenção.
Por Alexandre Figueiredo
A impressão que temos é que a visão dominante sobre cultura popular no Brasil mais parece a de uma "etnografia de chanchada", em que a relativa pouca idade de nossos antropólogos, sociólogos, historiadores e mesmo jornalistas culturais faz com que a compreensão de cultura das periferias seja, no mínimo, risível e estereotipada.
Me lembra muito do caso do filme de comédia O Homem da Califórnia (Encino Man), quando dois estudantes universitários encontram um fóssil de um homem pré-histórico e o adaptam à moda juvenil da época. Vestem-no com roupas transadas, levam-no para festas e coisa e tal. Transformam o homem das cavernas num estereótipo "sarado" e "modernoso".
E, a título de "rompermos com nossos preconceitos", é justamente isso que fazem nossos intelectuais menos críticos, porém muito mais influentes e dotados da maior visibilidade possível e, com toda a formação neoliberal latente em suas ideias, ainda tentam se alinhar ideologicamente à esquerda, por mais que seus pontos de vista sejam explicitamente corroborados pela Rede Globo e pela Folha de São Paulo.
Sem uma vivência real sobre o que é mesmo "o outro", no caso a periferia, ou mesmo sobre as populações indígenas - que durante muito tempo eram a "ralé" segundo o preconceito social vigente até meados do século passado - , nossa intelligentzia festiva prefere brincar de etnografia e acha que o "povão" transformado em estereótipo pela indústria cultural é a "moderna civilidade índia-negra-branca das periferias".
E isso é estarrecedor, na medida em que, em nosso país, era preciso que um estrangeiro como o antropólogo franco-belga Claude Levi-Strauss redescobrisse as populações indígenas para que o "secular" preconceito contra os índios e expresso no modo etnocêntrico de ver o outro começasse a ser neutralizado.
E olha que havíamos os alertas dos modernistas sobre a importância de vermos nossos antigos mestres, porque as populações indígenas eram os moradores mais antigos do Brasil, e muito do nosso vocabulário e dos valores sócio-culturais modernos - até mesmo a nossa pipoquinha do dia a dia - é herdada das antigas tribos indígenas.
IDEALIZAÇÃO DISFARÇADA
Só que o modo de ver o outro com preconceito não se dá somente pela rejeição. Se dá, acima de tudo e com muito mais frequência, com um aparente apoio, até com certo entusiasmo. Pois o modo de "aceitar o outro" com entusiasmo não significa necessariamente que se estabeleça uma ruptura vitoriosa contra o preconceito. Muitas vezes essa "adoração do outro" esconde preconceitos piores do que a própria rejeição.
O caso do "funk carioca" e de outros fenômenos da "cultura popular" midiática sinalizam isso. A defesa dada a eles esconde preconceitos piores do que a rejeição que outros críticos faziam aos mesmos.
Primeiro, porque são fenômenos meramente comerciais, condicionados pela persuasão da velha grande mídia. Muitos desses ídolos, independente da forma como eles surgiram, foram moldados ou remoldados pelo mercado, pelo tendenciosismo dos modismos, pelos valores "enlatados" e "manufaturados" pela velha mídia.
Mas a intelectualidade "divinizada" tenta ver nesses modismos de mercado a "verdadeira cultura popular". Clama ela que essa visão "rompe" com antigos preconceitos. Talvez, mas ela não deixa de criar outros.
Afinal, como modismos de mercado, muitos desses ritmos são na verdade decididos e desenvolvidos por um grupo de executivos, e difundidos por outro tanto de executivos, o que mostra que essa "cultura" não passa de mero negócio.
Mas quem é mais novo e cujos referenciais mais antigos se limitam às consultas livrescas e à suada pesquisa bibliográfica que não é emocionalmente vivenciada, mas apenas compreendida em "estado bruto" nas monografias e artigos acadêmicos, não quer saber se o "funk carioca" foi tramado pelos executivos do entretenimento nem como se deu esse processo.
Só que a adoração a esses ritmos - "funk carioca", tecnobrega, "forró eletrônico", brega dos anos 70, só para citar alguns exemplos mais típicos - esconde, nessa intelectualidade, um desejo de idealização da periferia. Por mais "adorada" que a população pobre seja, ela nem por isso deixa de ser vítima de um desejo de idealização por parte dessa intelectualidade influente.
Primeiro, porque essa intelectualidade, ela mesma também amestrada, na infância, pela televisão - localizemos sua infância feliz no tempo e veremos a televisão do "milagre brasileiro" da ditadura militar - , parece inocentar a própria mídia da culpa pela domesticação sócio-cultural das populações pobres.
Afinal, o que são os estereótipos para quem vê na própria realidade estereotipada da televisão a sua própria realidade? Daí o mito da caverna de Platão, do qual nomes como Paulo César Araújo e Pedro Alexandre Sanches são exemplos contemporâneos, e que já mostrava a concepção etnocêntrica da realidade, onde a caverna é "o mundo" e o que está fora dele é "preconceito".
E vemos o quanto muitas comédias, mesmo as comerciais, acabam nos ensinando sobre a realidade. Entusiasmados como o espetáculo do "funk carioca", tecnobrega, "forró eletrônico", "pagodão baiano" etc, os intelectuais querem travestir o povo pobre com a vestimenta estereotipada do pop estrangeiro, colocar bonés e camisetas de marca nos pobres e colocá-los num consumo de entretenimento que a intelectualidade não sabe ser subproduto dos executivos da mídia.
Os intelectuais etnocêntricos, então, lembram os antigos portugueses dando brindes para os índios em troca de pau-brasil. Ou então remetem àquele verso de uma antiga marchinha: "índio quer apito".
Tudo isso para não dizer que se trata, também, de uma visão elitista que vemos também no conto do "amigo dedicado" de Oscar Wilde, onde a intelectualidade "divinizada" faz o papel do "moleiro" e as periferias são o "jardineiro" em questão. E a pseudo-cultura "popular" de bregas e neo-bregas é o carrinho de mão com defeito que os "moleiros" dão de presente aos "jardineiros".
Tentando se afirmar como os "arautos das periferias" ou "defensores da verdadeiríssima cultura popular", esses intelectuais não passam de fidalgos modernos, que em troca dos antigos baiões, sambas e modinhas tirados do seio das classes populares, lhes deram em troca os "enlatados" culturais do estrangeiro que, através de rádios controladas por oligarquias, são formatadas pelo mercado sob o rótulo tendencioso da "nova cultura popular".
Desse modo, os tão queridos intelectuais etnocêntricos, endeusados pela opinião pública de caráter médio e dotados da mais alta visibilidade, mais parecem os estudantes universitários das comédias estudantis, que, vendo os fósseis de homens das cavernas, querem moldá-los de acordo com sua visão idealizada dos homens primitivos.
E essa intelectualidade ainda tem o descaramento de desmentir que está idealizando o povo pobre. Sua idealização se vê com muita facilidade. É só prestarmos atenção.
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