segunda-feira, 5 de abril de 2010

O que escapa ao debate público

Por Márcia Denser (congressoemfoco)

A campanha dos tucanos associa luta pela moralidade com menos Estado, ou seja, Estado mínimo, privatizações, menos regulamentação estatal, menos políticas sociais que geram "dependência" do Estado. Para eles, liberdade se identifica com livre mercado.

Mas este conceito-chave - livre mercado, palavrinha mágica da cartilha neoliberal - precisa ser examinado mais a fundo. E quem o faz é Fredric Jameson nos ensaios fundantes incluídos em A cultura do dinheiro (Rio, Vozes, 2002).

Citando John Gray (False dawn, Nova York, 1998), ele traça as conseqüências devastadoras de qualquer sistema de mercado livre se integralmente implementado, e identifica a contradição essencial da doutrina do mercado livre. A saber, que sua total implantação exige uma enorme intervenção governamental e, de fato, um aumento de poder de um governo centralizado.

O mercado livre não cresce naturalmente: precisa ser criado através de meios legislativos drásticos, a exemplo do governo de Margareth Thatcher na Inglaterra. Porém, as forças socialmente destrutivas do experimento de mercado livre de Thatcher não só produziram uma reação adversa entre aqueles que empobreceu, mas também acabaram pulverizando a "frente popular" dos grupos conservadores que apoiaram seu programa e que constituíram sua base eleitoral. A conclusão de Gray é que a própria democracia é incompatível com uma política de livre mercado, uma vez que, agora vou citar literalmente... "uma vez que a grande maioria do povo tem, necessariamente, que resistir ao empobrecimento e às outras conseqüências nocivas, desde que possam reconhecê-las e tenham meios eleitorais de resistir".

Jameson considera que esse é um antídoto poderoso contra a retórica celebratória da globalização e do mercado livre nos Estados Unidos. É precisamente essa retórica ou, em outras palavras, a própria teoria neoliberal que é o agente genuíno das mudanças desastrosas no mundo contemporâneo.

É preciso ressaltar que a ideologia neoliberal que alimenta a globalização do mundo livre é um fenômeno específicamente norte-americano. Thatcher pode tê-la posto em prática mas, como se viu, no processo destruiu a si mesma e também ao neoliberalismo de mercado livre na Inglaterra.

O fato é que essa doutrina não é compartilhada para valer por nenhum outro país do mundo. A Europa, por exemplo, inclinou-se sempre mais para aquilo que Gray chama de "mercado social" - em outras palavras, o Estado do bem-estar e da social democracia. Logo, o "mercado social" arrolado pelo presidente Lula não é nenhuma sandice nem contradição nos termos, ele apenas utilizou uma expressão usada entre os autores norte-americanos.

A respeito das devastações do livre mercado, Jameson aponta os Estados Unidos como a pior das distopias: polarização social drástica e empobrecimento, a destruição das classes médias, desemprego estrutural em larga escala sem a rede de proteção do bem-estar social, uma das mais altas taxas de encarceramento do mundo, cidades devastadas, famílias desintegradas (aqui, qualquer semelhança com as condições do modo de vida do paulistano não é mera coincidência!) - são essas as perspectivas para qualquer sociedade atraída pelo mercado livre absoluto. Ele conclui que a atomização e a destruição do social fazem dos Estados Unidos uma lição objetiva terrível para o resto do mundo.

Traduzindo em termos de Brasil: diante do exposto, apregoar ainda e agora as "vantagens" duma política neoliberal de livre mercado, que é a base da agenda dos tucanos, é apenas outra má "idéia fora-de-lugar" que novamente escapa ao debate público, deixando passar incólume todo o suspeitíssimo processo de privatizações, como transferências de recursos públicos a empresas privadas a preços irrisórios e em concorrências fraudadas. Afinal, quem se importa, não é mesmo?

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