por Alfred W. McCoy[1], no Tom Dispatch e reproduzido no Asia Times Online
Por vias que a maioria dos observadores não vêem, o governo Obama já está enredado no ciclo infinito de drogas e morte no Afeganistão do qual não há saída óbvia e que não tem fim à vista.
Depois de um ano de debates cautelosos e medidas caras, o presidente Obama finalmente deu os primeiros passos para uma nova estratégia de guerra no Afeganistão, às 2h40 da tarde do dia 13/2/2010, numa remota vila-mercado chamada Marja na província de Helmand, no sul do Afeganistão. Enquanto um enxame de helicópteros sobrevoava os arredores de Marja levantando nuvens de poeira, centenas de Marines dos EUA invadiam os campos de papoula em direção à parte murada da cidade.
Depois de uma semana de combates, o comandante geral dos EUA general Stanley A. McChrystal chegava à cidade com o vice-presidente do Afeganistão e o governador da província de Helmand. Sua missão: falar a uma coletiva de imprensa sobre a estratégia new-look de combate aos guerrilheiros baseada em levar “o Estado” e “o governo” a vilas remotas exatamente iguais a Marja.
Em ocasião cuidadosamente planejada com a presença de cerca de 200 moradores locais, pressupostos favoráveis ao “Estado” e ao “governo”, o vice-presidente e o governador, contudo, enfrentaram fúria inesperada e muito clara. “Se vierem com tratores”, disse uma viúva afegã, apoiada num coro de fazendeiros locais, “terão de passar com os tratores sobre mim e terão de me matar, antes de destruir minhas papoulas”.
Para aqueles plantadores de papoulas e outros milhares como eles, a volta do controle governamental, por democrático que seja, implica sempre a mesma ameaça mortal: a erradicação do ópio.
Entre tiros e gritaria, os comandantes militares norte-americanos, por estranho que pareça, pareciam não saber, até aquele momento, que Marja pode ser descrita como a capital mundial da heroína – com centenas de laboratórios, cuidadosamente camuflados nas casas de tijolos de argila da região, onde se processa regularmente a colheita local de papoula e se a converte em heroína de alto grau de pureza. De fato, os campos da Província de Helmand produzem nada menos que espantosos 40% da produção mundial do ópio ilícito, e boa parte da colheita é comercializada em Marja. Correndo por aqueles campos de ópio para atacar os Talibã no primeiro dia da ofensiva, os Marines passavam sem ver pelo seu verdadeiro inimigo, a força que mantém viva a guerrilha Talibã; e perseguiram o que não passa de floração nova de guerrilheiros camponeses cujas armas e salários são pagos pelos pés de papoula. “Não se pode vencer essa guerra”, disse um funcionário da embaixada dos EUA, de volta de uma viagem de inspeção pelos distritos do ópio, “sem acabar com a produção de drogas na Província de Helmand.”
De fato, enquanto o “Air Force One” voava rumo a Cabul, domingo, James L. Jones, Conselheiro para Segurança Nacional do governo Obama, dizia aos jornalistas que o presidente Obama viajara para tentar persuadir o presidente afegão Hamid Karzai a dar prioridade à “luta contra a corrupção, que tiraria o alento dos narcotraficantes”. O comércio de drogas, acrescentou ele, “alimenta o motor econômico a favor dos ‘insurgentes’”.
Assim como os plantadores de Marja estragaram a festa ‘jornalística’ do general McChrystal, assim também os mesmos plantadores e suas colheitas conseguiram subverter todos os governos e todos os Estado que se tentou implantar no Afeganistão nos últimos 30 anos. Durante a guerra oculta da CIA nos anos 80s, o ópio financiou os mujahedeen ou “combatentes da liberdade” (como os chamava o presidente Ronald Reagan), que finalmente forçaram os soviéticos a abandonar o país e derrotaram o Estado marxista cliente.
No final da década dos 90s, os Talibãs, que haviam tomado o poder em praticamente todo o país, desafiaram a legitimidade internacional porque protegeram o ópio e lucraram com ele – até que, ironicamente, foram derrubados do poder apenas alguns meses depois de mudar de curto e proibir a colheita. A partir da intervenção militar pelos EUA em 2001, uma maré montante de ópio corrompeu o governo em Cabul e devolveu o poder aos Talibãs ressurgentes, cujos guerrilheiros assumiram o controle sobre porções cada dia maiores do interior do Afeganistão.
Essas três eras de guerra praticamente sem interrupção alimentaram um crescimento sem controle da colheita de ópio no Afeganistão – que subiu de apenas 250 toneladas em 1979, para 8.200 toneladas em 2007. Nos últimos cinco anos, a colheita afegã de ópio é responsável por 50% do PIB nacional e é matéria prima para a produção de mais de 90% da heroína que circula no planeta.
A devastação do meio ambiente e o desmanche social que essas três décadas de guerra provocaram empurraram o ópio para cada vez mais fundo no tecido social do Afeganistão, a tal ponto que a situação hoje praticamente não pode ser nem compreendida, nem modificada, nem pelas mais brilhantes mentes de Washington (como tampouco pode ser, nem compreendida, nem modificada pelas mais incapazes e mais incompetentes). Gaguejando entre ignorar o ópio e exigir “total erradicação”, o governo Bush capengou durante sete anos, enquanto a heroína ganhava mercados mundiais; de tanto gaguejar e capengar, ajudou a criar uma economia da droga que corrompeu, devorou e paralisou o governo de seu aliado Presidente Karzai.
Atualmente, a produção de ópio alimenta 500 mil famílias afegãs, cerca de 20% da população nacional, e financia uma guerrilha dos Talibãs que, desde 2006, só fez expandir-se para o interior do país.
Para entender a Guerra do Afeganistão, é indispensável entender um ponto: em países pobres, com Estado que não oferece serviços básicos, a agricultura é a base de todas as políticas – e os camponeses e agricultores ligam-se a senhores-da-guerra ou a rebeldes, pelas mesmas razões pelas quais se ligariam a um Estado que provesse as condições mínimas de sobrevivência. O objetivo último da estratégia da contraguerrilha é estabelecer a autoridade do Estado. Quando a economia é ilícita e, por definição, escapa a qualquer controle pelo Estado, a tarefa da contraguerrilha torna-se gigantesca. Mas se acontece de os guerrilheiros capturarem aquela economia ilícita, como fizeram os Talibãs, nesse caso a contraguerrilha passa a ser tarefa quase, na prática, irrealizável.
Ópio é droga ilegal, mas a colheita de papoulas no Afeganistão continua na base de redes de confiança social que ligam as pessoas em todas as etapas da cadeia de produção. Os empréstimos são indispensáveis para a semeadura, as relações de trabalho são vitais na colheita, a estabilidade é indispensável para a comercialização e a segurança é indispensável para o embarque. A economia do ópio é tão dominante e problemática no Afeganistão de hoje que é indispensável propor a questão da qual Washington foge há nove anos: é possível pacificar um narco-Estado maduro?
A resposta a essa questão crucial deve ser buscada na história das três guerras do Afeganistão nas quais Washington esteve envolvida nos últimos 30 anos – a guerra oculta da CIA nos anos 80s, a guerra civil dos anos 90s (iniciada pelo financiamento produzido pela CIA, de 900 milhões de dólares) e, desde 2001, a invasão, ocupação e campanhas contraguerrilhas movidas pelos EUA. Em cada um desses conflitos, Washington tolerou o tráfico de drogas feito pelos seus aliados afegãos e entendido como preço do sucesso militar – política de negligência considerada benigna que ajudou a fazer do Afeganistão o mais consumado e maduro narco-Estado que há hoje no mundo.
Os anos 80s: guerra secreta da CIA, crescimento dos campos de papoula e dos laboratórios de refino
O ópio surgiu como elemento-chave da política afegã durante a guerra oculta da CIA contra os soviéticos, a última de uma série de operações secretas desencadeadas nas terras montanhosas dessa região da Ásia, que se estende por 6.500km, da Turquia à Tailândia. No final da década dos 40s, enquanto a Guerra Fria ganhava ímpeto, os EUA, primeiro, planejaram e executaram ataques encobertos contra os comunistas nessa área de montanhas – em Burma durante os anos 50s, no Laos nos anos 60s, e no Afeganistão nos anos 80s. Numa dessas ironias de que a história está cheia, a influência da China comunista e da União Soviética coincidia com a zona asiática do ópio, numa mesma região montanhosa – motivo pelo qual a CIA, desde o início, construiu alianças muito ambíguas com os senhores-da-guerra locais.
A primeira guerra de Washington no Afeganistão começou em 1979, quando a URSS invadiu o país para salvar um regime-cliente marxista com sede em Cabul, capital do Afeganistão. Vendo aí uma oportunidade para atacar seu inimigo da Guerra Fria, o governo Reagan passou a trabalhar em íntima associação com a ditadura militar paquistanesa, no que seria campanha da CIA para expulsar os soviéticos e duraria dez anos.
Foi operação secreta, mas diferente de outras operações secretas dos anos da Guerra Fria. Primeiro, o confronto entre a operação secreta da CIA e a guerra convencional dos russos devastou o frágil equilíbrio ecológico das montanhas do Afeganistão; destruiu a agricultura tradicional além de qualquer possibilidade de recuperação imediata; e fez aumentar a relevância do tráfico internacional de droga para a sobrevivência das populações locais. Além disso, e igualmente importante, em vez de a CIA fazer sua própria guerra oculta, como fizera nos anos da guerra do Laos e do Vietnã, no Afeganistão a CIA “terceirizou” grande parte das operações, que foram entregues ao serviço secreto [ing. Inter-Service Intelligence (ISI)] do Paquistão; criou assim o que em pouco tempo seria aliado poderoso, mas cada vez mais problemático.
Quando o serviço secreto do Paquistão apresentou seu cliente-aliado afegão Gulbuddin Hekmatyar, como líder supremo da resistência antissoviéticos, Washington – praticamente sem alternativas – aceitou-o.
Nos dez anos seguintes, a CIA entregou cerca de 2 bilhões de dólares aos mujahedeen afegãos através do ISI. Metade desse dinheiro foi entregue diretamente a Hekmatyar, fundamentalista violento, conhecido por ter jogado ácido no rosto de mulheres sem véu na Universidade de Cabul [2] e, depois, pelo assassinato de opositores que disputavam a liderança do seu grupo. Em maio de 1990, quando a CIA tentava por fim às suas operações no Afeganistão, o Washington Post publicou matéria de primeira página na qual acusava o principal aliado da CIA, Hekmatyar, de operar uma cadeia de laboratórios de refino de heroína em território paquistanês, sob proteção do serviço secreto do Paquistão (ISI).
Em meados dos anos 70s não se produzia heroína nessa área. A guerra secreta da CIA serviu como catalisador que converteu a fronteira Afeganistão-Paquistão na principal região de produção de heroína do planeta. À medida que os guerrilheiros mujahedeen capturavam as principais áreas agricultáveis em território do Afeganistão no início da década dos 80s, começaram também a recolher um imposto revolucionário sobre a papoula, pago pelos camponeses que os apoiavam.
Depois de os guerrilheiros afegãos terem levado o ópio para o outro lado da fronteira, passaram a vender matéria prima para centenas de laboratórios paquistaneses de refino de heroína que operavam sob proteção do serviço secreto do Paquistão. Entre 1981 e 1990, a produção afegã de ópio foi multiplicada por 10 – de 250 toneladas, para 2.000 toneladas. Apenas dois anos depois de iniciada a operação em que a CIA apoiou secretamente os guerrilheiros afegãos, o Procurador Geral dos EUA anunciou, em 1981, que o Paquistão já era fonte de 60% da heroína que chegava aos EUA. Na Europa e na Rússia, a heroína paquistanesa rapidamente conquistou parcelas cada vez maiores dos mercados locais e no próprio Paquistão o número de dependentes subiu de zero em 1979, para 1,2 milhão apenas cinco anos depois.
Depois de investir 3 bilhões de dólares para destruir o Afeganistão, Washington simplesmente partiu de lá, em 1992, deixando atrás de si um país totalmente devastado, com mais de um milhão de mortos, cinco milhões de refugiados, alguma coisa entre 10 milhões e 20 milhões de minas ainda não desativadas, a infraestrutura arruinada, a economia em frangalhos, e vários senhores-da-guerra armados e prontos para lutar entre eles pelo controle da capital. Mesmo depois de Washington ter finalmente interrompido o financiamento secreto para aquelas operações, no final de 1991, ainda assim o serviço secreto do Paquistão continuou a favorecer os senhores-da-guerra locais, em sua meta de longo prazo, de instalar um regime cliente pashtun em Cabul.
Os anos 90s: Senhores-da-droga, dentes de dragão e guerras civis
Durante os anos 90s, senhores-da-guerra locais sanguinários misturaram armas e ópio numa receita letal, parte de uma luta brutal pelo poder. Foi quase como se o solo estivesse semeado com dentes de dragão que, como conta a lenda, brotavam repentinamente e convertiam-se em soldados armados, gigantescos exércitos deles, saltando da terra de espadas em punho e prontos para a guerra.
Quando as forças da resistência do Norte finalmente arrancaram Cabul das garras do regime comunista – que sobreviveu ainda por três anos depois da retirada dos soviéticos – o Paquistão ainda financiava seu aliado Hekmatyar. E ele, por sua vez, descarregou seus canhões sobre a capital sitiada. Resultado: só nesse ataque morreram mais 50 mil afegãos. Mas nem um massacre dessas proporções bastaria para levar ao poder aquele fundamentalista impopular. Então o serviço secreto do Paquistão (ISI) criou e armou uma nova força, os Talibãs. Em setembro de 1996, os Talibãs afinal conseguiram capturar Cabul, o que só lhes rendeu mais cinco anos de guerra contra a Aliança do Norte, nos vales do norte da capital.
Durante esses anos de uma guerra civil que parecia interminável, as facções em luta apoiaram-se pesadamente no ópio como fonte de recursos para financiar a guerra; daí que, em 1999, a colheita de papoula já duplicara, para 4.600 toneladas. Nessas duas décadas de guerra e aumento de 22 vezes na produção de drogas, o próprio Afeganistão foi sendo lentamente convertido, de ecossistema agrícola diversificado – criação de gado, hortaliças e colheitas de mais de 60 itens de alimentação – em a primeira economia do mundo dependente da produção de uma única droga ilegal. No processo, uma já frágil ecologia humana foi arrastada para situação de ruína jamais vista no planeta.
Localizada na franja norte da região das chuvas anuais de monção, onde as nuvens que chegam formam-se na área já muito seca do Mar da Arábia, o Afeganistão é terra árida. As colheitas de alimento sempre foram mantidas por sistemas de irrigação abastecidos por água do degelo das altas montanhas. Para suplementar as colheitas, por exemplo, de trigo, muitas tribos afegãs têm de conduzir grandes rebanhos de ovelhas e bodes em deslocamentos de centenas de quilômetros, até as pastagens de verão nos planaltos centrais do país. Muito importante também nessa economia são as colheitas de plantas perenes – castanhas, pistaches e amoras – que sobrevivem porque são plantas de raízes longas, que alcançam águas muito profundas e resistem aos longos períodos de estiagem; nos anos mais secos, são o único alívio existente para a fome.
Nessas duas décadas de guerra, armas modernas, de poder de fogo devastador, dizimaram os rebanhos, destruíram as redes de irrigação e todas as hortas. Enquanto os soviéticos limitavam-se aos tiros, os Talibãs, com faro animal para acertar a jugular da vida social e econômica de sua gente, violaram todas as regras tradicionais da guerra afegã e dedicaram-se a destruir as hortas, plantações e rebanhos domésticos que havia na vasta planície Shamali ao norte de Cabul.
Todos esses fios de destruição se autoteceram até constituir um nó górdio de sofrimento humano, para o qual o ópio aparece como única saída. Como a espada legendária de Alexandre, o ópio serviu de via direta para fora de um quadro desesperadoramente complexo. Sem ajuda para recompor os rebanhos, replantar os campos ou refazer as hortas, os agricultores afegãos – os que sobreviveram e mais 3 milhões de refugiados que voltaram – encontraram um meio de sustento no ópio, que historicamente sempre foi parte muito pequena, mas sempre presente, da agricultura afegã.
O cultivo do ópio exige nove vezes mais mão de obra por hectare que o trigo; por isso, foi fonte imediata de emprego temporário para mais de um milhão de afegãos – metade dos quais, pelo menos, estavam desempregados naquele momento. Nessa terra devastada e nessa economia arruinada, só os mercadores do ópio poderiam acumular capital rapidamente; com esse capital acumulado, puderam oferecer aos plantadores de papoula financiamentos equivalentes a mais da metade de seus lucros anuais, um crédito crucialmente importante para a sobrevivência de muitos aldeões pobres.
O artigo completo ( aqui)
Notas:
[ 1] Alfred W. McCoy é professor na cátedra J.R.W. Smail, de História, da University of Wisconsin-Madison. É autor de The Politics of Heroin: CIA Complicity in the Global Drug Trade, em que disseca a conjuntura das drogas ilegais e de operações clandestinas ao longo de 50 anos. Seu livro mais recente, Policing America’s Empire: The United States, the Philippines, and the Rise of the Surveillance State, examina a influência de operações de guerrilha por todo o mundo na expansão de medidas de segurança internas nos EUA.
[2] Há exatamente a mesma referência a Hekmatyar em CHOMSKY, Noam. 23/3/2010. “The evil scourge of terrorism”: “Reality, construction, remedy”. Conferência na International Erich Fromm Society, Stuttgart, Germany (em inglês em http://chomsky.info/talks/20100323.htm ).
O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.tomdispatch.com/post/175225/tomgram:_alfred_mccoy,_afghanistan_as_a_drug_war __
e
http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LD01Df02
Tradução: Caia Fittipaldi
Do Blog vi o mundo
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