sábado, 31 de outubro de 2009

O Rio e a hipocrisia: somos todos culpados.Sandra Crespo explica didaticamente e choca os cínicos e críticos

Sandra Crespo

Cenas de violência e barbárie no Rio de Janeiro voltaram a chocar o Brasil e o mundo nos últimos dias.

Na mídia, policiais e especialistas debatem calorosamente; em locais de trabalho e em rodinhas de amigos, volta a pergunta de sempre: até quando iremos ver tantas cenas aterrorizantes, quantos inocentes ainda vão morrer numa guerra que não é de ninguém? A pergunta que surge a cada invasão de morro e logo some na fumaça do tiroteio pode ainda não ter resposta. Mas não é preciso ser especialista para saber que tanta violência tem nome e sobrenome: crime organizado somado a décadas de ausência do Estado, temperado com a indiferença da sociedade.
De toda a sociedade brasileira, não só a do Rio, nem mesmo apenas a de parcela da Zona Sul que, cínica, compra pó no pé do morro e torce o branco nariz para as obras sociais do operário-presidente nas comunidades pobres.

Carimbam-nas: “obras eleitoreiras”, ao passo que as melhorias em seus bairros turísticos-novelísticos são, ao contrário, necessárias.

Quando voltadas aos pobres, as obras servem apenas para ganhar eleições (aliás, por que pobre vota?). Mas, saindo um pouco da Casa Grande, voltemos à realidade nua e crua.

Pela primeira vez, em décadas, o Rio é beneficiado por medidas do poder público nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal).

Há vontade política dos governantes em solucionar inúmeros problemas urbanos acumulados, há dinheiro investido em iniciativas que visam dar dignidade à favela e ao subúrbio, há experiência positiva — mas ainda incipiente — de comunidades pacificadas.

Leio que o governo federal elabora projeto de lei que retira a pena de prisão para pequenos traficantes que tenham bons antecedentes e não estejam ligados ao crime organizado.

A intenção é evitar que essas pessoas, que muitas vezes traficam para sustentar seus vícios, cheguem à cadeia e sejam cooptadas pelo tráfico — situação verificada na maioria dos casos, segundo a pesquisa que embasa a proposta, encomendada à UFRJ e à UnB. Sim, os governos estão fazendo alguma coisa. É suficiente? Não, precisamos de mais medidas, precisamos de um mutirão. É aí que entra a sociedade.

Na Espanha, o usuário de maconha pode plantar em casa pequenas quantidades da planta para consumo próprio.

A Espanha é um país predominantemente católico e viveu sob ditadura cruenta durante anos. Por que lá pode e aqui não? Porque aqui não ousamos nem mesmo discutir o assunto. Quando o ministro Carlos Minc, num ato de coragem e cidadania, participa de uma marcha pela descriminalização da maconha, recebe sorrisinhos benevolentes à esquerda — “ah, como ele é folclórico” — e insultos à direita.

Nada de discussão séria a respeito do assunto, nem por partidos progressistas como o PT e o PCdoB, tampouco por ONGs que atuam diretamente nas comunidades mais afetadas. Ao tapar os olhos, ao nos negarmos a admitir que esse debate já passou da hora, inclusive quanto aos usuários de drogas pesadas — que deveriam ser tratados como um problema de saúde pública, não de segurança pública —, todos perdemos. Meninos no tráfico, balas perdidas, helicópteros derrubados, corpos jogados em lixeiras e em carrinhos de supermercado.

Estamos errados também nós, não cariocas, que, igualmente vivendo atrás de grades, vidros pretos (não se vê nem vultos através das janelas dos carros no Brasil) e cercas elétricas, consideramos que o problema do Rio é só do Rio.

Devemos ter em mente que o Rio é a cidade-símbolo do Brasil, para o bem e para o mal. É maravilhosa, hospitaleira e alegre, mas também pobre, violenta e corrupta. O que acontece por lá ricocheteia em todas as outras cidades brasileiras.

Devemos lembrar que o narcotráfico começa em fronteiras terrestres, fluviais e aéreas em todos os estados. E as armas, essas também adentram o Brasil do Oiapoque ao Chuí. Ai, as armas... tão amadas por quase 64% de brasileiros — de bem— que disseram não ao desarmamento no referendo de 2005.

Fuzis e metralhadoras, é claro, estão em mãos indevidas. E matam a rodo, destruindo sonhos de jovens e suas famílias indefesas.

Então, será que vamos continuar fumando e cheirando no escurinho, sem mostrar a cara em manifestações e debates sobre a mudança na política sobre drogas; criticando obras sociais por puro preconceito de classe; apoiando armas na ilusão de que assim nos protegemos dos bandidos; fazendo passeata na praia, todo mundo de branco, como se fosse jogar flores para Iemanjá? Brasil, mostra a sua cara: a cara linda e horrenda do Rio de Janeiro.

Do blog Aposentado Invocado

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