quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Guerra e política

Steve Coll, New Yorker

No verão, o comitê militar dos Taliban afegãos distribuiu “Um livro de Regras” em pashtun, aos seus combatentes. Os 11 capítulos do livro parecem inspirados no Manual de Campo 3-24 dos EUA [Field Manual FM 3-24: Counterinsurgency, EUA, 2006. Na íntegra aqui, em inglês], o manual de campo do exército dos EUA publicado em 2006 e muito divulgado.

Nos termos do guia dos Taliban, os homens-bomba devem “tomar todo o cuidado e as necessárias medidas para evitar a morte de civis.” Os comandantes devem assegurar “a segurança da vida e das propriedades dos civis.” Além disso, para tranqüilidade dos pais e mães afegãos, os guerrilheiros Taliban devem evitar contato social com jovens imberbes e, sobretudo, devem evitar “mantê-los nos acampamentos e campos.”

O manual seria engraçado, se a feroz insurgência Taliban não fosse tão efetiva. O presidente do Afeganistão, o sempre autorreferente Hamid Karzai, bem teria o que aprender do manual dos Taliban; e se fosse capaz de corresponder à metade da sede de justiça e segurança de seus concidadãos de modo tão infalível quanto fazem seus inimigos, o presidente Barack Obama não continuaria a insistir nessa sua “boa guerra”, a mesma que, na campanha para a Casa Branca, prometeu vencer.

A deterioração do Afeganistão não é culpa de um só homem e com certeza não é culpa de Karzai. Depois da derrubada do regime dos Taliban, Karzai foi como um símbolo de unidade nacional em nação esfacelada – por vários anos, foi o único líder afegão que gozava da confiança, ao mesmo tempo, das milícias tadjiques do norte, das tribos pashtun do sul e dos ricos doadores de ajuda humanitária internacional. As dimensões da vitória que obteve nas eleições de 2004 fizeram prova de sua sólida posição e de sua representatividade.

Gradualmente, porém, Karzai pareceu sucumbir à febre da corrupção palaciana. Foi derrotado por uma mistura infeliz de ego e passividade; não conseguiu administrar a presença dos EUA em seu país, nem usar os fracassos dos EUA a seu favor, reconstruindo-se, ele mesmo, como nacionalista confiável. Durante anos, o governo Bush aceitou as limitações de Karzai e nada fez para criar condições que gerassem qualquer alternativa plausível. Em 2008, ao aproximarem-se novas eleições, conselheiros de Bush, pelo menos, farejaram que algo não ia bem; alguns consideraram a possibilidade de derrubar Karzai. Ao final, porém, Bush optou por uma política de neutralidade, que o governo que o sucedeu, de Barack Obama, endossou.

Não há meio suave para julgar o modo como Karzai jogou seu jogo: ele ou seus apoiadores fraudaram vergonhosamente as eleições de 20/8, dia em que vários milhões de afegãos arriscaram a vida contra as ameaças dos Taliban e acorreram às urnas. Recentemente, depois de semanas de equívocos, o chefe da missão da ONU em Kabul, Kai Eide, norueguês, admitiu que a eleições foram exercício de “fraude disseminada” (pouco antes, a ONU demitira o representante norte-americano de Eide, Peter Galbraith, por ter sido excessivamente enfático ao expor a mesma conclusão). As estimativas da ONU sobre comparecimento de eleitores às urnas mostram que praticamente todas as fraudes aconteceram em áreas eleitorais controladas por Karzai, onde os números foram escandalosamente alterados. Na província de Helmand, ao sul, por exemplo, a ONU estima q ue os asseclas de Karzai podem ter fabricado mais de 70 mil votos falsos; em Kandahar, 120 mil; em Paktika, 160 mil. De junho a agosto, morreram cerca de 200 soldados da coalizão, em operações militares conduzidas, em boa parte, para garantir a segurança das eleições.

O que se vê como a traição de Karzai choca; mas será erro grave superenfatizar seus fracassos, assim como foi erro superenfatizar seus sucessos iniciais. Os interesses dos EUA no Afeganistão – desarticular a Al-Qaeda na fronteira Paquistão-Afeganistão e tentar implantar uma área livre da ameaça da revolução dos Taliban – não se devem confundir com a busca de um presidente não-corrupto para Kabul, onde só muito raramente se viram governantes confiáveis.

Agora, um segundo turno de eleições parece provável. Pode ajudar a acalmar o país, mas pode também piorar as coisas. De qualquer modo, as eleições ainda não são catástrofe consumada. Há dois anos, no Quênia, Mwai Kibaki foi acusado de fraudar sua reeleição à presidência, e o país explodiu em manifestações de rua e ataques de milícias. Em junho, a suspeita de fraude nas eleições iranianas foi a fagulha que incendiou a população com ambições revolucionárias. No Afeganistão, no que pese a fraude possivelmente decisiva, a oposição mal consegue jogar pedras. Abdullah Abdullah, o candidato ‘assaltado’ promove, no máximo, conferências de imprensa no jardim de sua casa.

Desnecessário lembrar que os afegãos estão fartos de violência. A moderação de Abdullah parece sinalizar um desejo mais amplo, de muitos políticos e líderes tribais, de evitar que o país, outra vez, mergulhe no caos. Esse é o tipo de brecha que a política exterior dos EUA jamais teve sensibilidade para detectar desde a queda dos Taliban, no final de 2001: uma oportunidade, por pequena que seja, de fugir ao recurso aos senhores-da-guerra e homens considerados ‘necessários’, em favor de movimentos de mais ampla e profunda participação popular, que favoreça alguma reforma da política afegã e a reconciliação nacional.

Mais do que decidir sobre o número de soldados, o governo Obama tem ainda de construir alguma estratégia política ambiciosa para o Afeganistão, que se beneficie da disposição dos líderes da oposição para negociar, mesmo com esse já maculado presidente Karzai, sobre inúmeras importantes questões nacionais. Dentre essas, um modo de evitar futuras fraudes eleitorais; se os governadores provinciais devem ser eleitos ou nomeados pelo presidente; como assegurar o equilíbrio entre os diferentes grupos étnicos, à medida que aumentam os contingentes do Exército nacional e das forças policiais; como (e se) fortalecer os partidos políticos; se a Constituição de 2004 deve ser revista, para dar mais poderes ao Parlamento; como fortalecer o governo local; como investigar e levar a julgamento os funcionários do governo comprometidos com o t ráfico de drogas e a corrupção; e como levar os guerrilheiros Taliban a trocar a revolução pela via violenta, pela política constitucional.

Especificar os temas a serem negociados não é que mais importa. O que realmente conta é construir um projeto para continuadas negociações a serem conduzidas pelos afegãos, formais e informais, apoiadas por dinheiro, atenção e especialistas internacionais. Alguns desses projetos, como o estabelecimento de centros de reabilitação local para os combatentes Taliban que desertem, dentre outros, exigem investimentos urgentes e ininterruptos, ao longo de meses.

Nada garante que esse trabalho político seja bem-sucedido, como nada garante nada, de fato, no Afeganistão. Karzai resistirá a qualquer movimento que vise a reduzir seu poder ou sua autoridade; esforços que se apliquem para pacificar os grupos do norte, como os que estão alinhados com Abdullah, complicarão o trabalho para pacificar os Taliban, enraizados no sul e no leste. Seja como for, esse trabalho político é essencial. – Campanhas de contrainsurgência raramente são bem-sucedidas, a menos que o trabalho dos militares esteja intimimamente associado a negociações políticas.

Desde que a URSS invadiu o Afeganistão em 1979, todos os esforços empreendidos por potências estrangeiras para influir no desenrolar dos eventos sempre foram minados por algo que os analistas de inteligência chamam de “resposta de espelho”: a tendência, entre os políticos de um país, de avaliar o ‘outro lado’ pelo prisma de sua própria política e de sua própria linguagem. O Politburo, por exemplo, envolveu-se em debates fortes sobre o processo pelo qual o Afeganistão deveria ser levado a cumprir as várias etapas do desenvolvimento revolucionário como pensado na e pela teoria marxista-leninista.

Hoje, nas reuniões do gabinete de guerra de Obama, quande se discutem o que se consideram ‘escolhas’ dos EUA, o discurso dos norte-americanos raramente chama os líderes afegãos pelo nome; e raramente se consideram as específicas condições reinantes em cada uma das várias províncias do Afeganistão. Em vez disso, abundam as analogias históricas e conceitos abstratos construídos nos textos e cursos de economia política — discussões e mais discussões sobre “legitimidade” e “governança” – como se os Taliban fossem examinandos de algum curso de pós-graduação em “Direitos Humanos”.

Obama e seus assesores bem fariam se consultassem o “Livro das Regras” de seu próprio Partido Democrata, sobretudo a introdução, escrita por um pacífico cidadão de Massachusetts: “A política é sempre local.”. No caso do Afeganistão, a regra seguinte encaixa à perfeição: “No plano local, todos os sucessos e todos os fracassos são efeitos da política.”

O artigo original, em inglês, pode ser lido em:

http://www.newyorker.com/talk/comment/2009/10/26/091026taco_talk_coll

Do blog do Azenha, Vi o mundo

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