sexta-feira, 10 de julho de 2009

O que é o senso comum?


Todo o conhecimento, tanto comum como científico, é formado por elementos fornecidos pela intuição sensível e elaborados pelo pensamento. A elaboração é a obra da razão, que se define como a função de coordenação do pensamento na sua actividade de conhecimento, função que se exerce mediante princípios (de identidade, de contradição, de causalidade, etc.) constitutivos da razão. O conhecimento comum é quase sempre o produto de uma elaboração espontânea da razão, ao passo que o conhecimento científico resulta de uma elaboração reflectida, metódica, prosseguida de modo voluntário e, por vezes, árduo.
No conhecimento comum, as sensações obtidas pelos órgãos dos sentidos são elaboradas inconscientemente em percepções, depois, o espírito, graças à memória, compara entre si as diversas percepções, analisa-as e observa, assim, certos retornos de fenómenos análogos. Muito naturalmente, o espírito aguarda o seu reaparecimento e torna-se capaz, em certa medida, de os prever; formula, assim, leis empíricas, como as seguintes: todo o homem morre; o fogo coze os alimentos e queima.
Não obstante os seus defeitos e as suas insuficiências, o conhecimento comum ou empírico é um seguro caminhar para o conhecimento científico, porque comporta já um certo grau de generalidade; pode, efectivamente, enunciar leis (nem sempre rigorosas) e, embora subjectivo em larga medida, isto é, variável de indivíduo para indivíduo, é grandemente influenciado e regularizado pela sociedade, mediante a linguagem.
É ensinando a criança a falar que se forma o seu pensamento, que se lhe dá a possibilidade de o fixar, de o ordenar e de o comunicar. Um pensamento que a linguagem não fixasse permaneceria vago, fugidio, incaptável e incoerente. Ora, a linguagem é um produto social e o pensamento comum modela-se sob a sua influência constante; fornece-lhe uma grande quantidade de matrizes gerais inteiramente prontas; são as palavras que permitem classificar rapidamente as sensações novas e, com a ajuda da sintaxe, pô-las em relação com as antigas. A linguagem permite generalizar facilmente observações particulares, porque as palavras são veículos de ideias gerais, conceitos universais. Pode dizer-se que ela transmite os resultados das observações e do enorme trabalho mental das gerações que presidiram à sua formação.
Assim, a linguagem tende a diminuir o carácter subjectivo do conhecimento comum, ao fazer participar o indivíduo nos modos de pensar de um meio social extenso, no seio do qual os indivíduos controlam reciprocamente os seus conhecimentos, ao comunicá-los.
O objectivo do conhecimento comum, estruturado e uniformizado pela linguagem, é adaptar-nos ao nosso meio, permitir que nos preservemos dos perigos que nos ameaçam, e que procuremos alimentos. Orientado essencialmente para a acção e a prática, ele é sobretudo utilitário e tende para o fabrico de utensílios que aumentam o nosso poder sobre as coisas e os seres. Pela construção de utensílios rudimentares, o pensamento, antes de todo o conhecimento propriamente científico, mede-se já com uma realidade exterior que lhe resiste e que o rectifica sempre que se transvia. Um utensílio mal concebido revela-se, na prática, como inutilizável e obriga por isso mesmo o pensamento a construir um que seja eficaz, por conseguinte, a corrigir-se para melhor se adaptar à realidade material.
Mas não entramos apenas em relação com o mundo material; é igualmente necessário que nos adaptemos aos nossos semelhantes, que adivinhemos as suas intenções e prevejamos, em certa medida, as suas acções. A psicologia empírica responde a esta necessidade; desigualmente desenvolvida nos diversos indivíduos, funda-se em indícios pequenos (jogos de fisionomia, gestos, etc.) mais ou menos habilmente interpretados. Existe, sem dúvida, desde que há sociedades humanas, ao passo que a psicologia científica é de criação recente.
Maurice Gex, Éléments de Philosophie des Sciences, Éditions du Griffon, Neuchâtel, págs. 15-18

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