
por Rodrigo Viana, no blog Escrevinhador
No começo dos anos 80, São Paulo já havia explodido como metrópole. Nas franjas da cidade - especialmente nas zonas sul e leste - surgiam bairros precários, onde os imigrantes que chegavam do Nordeste iam construindo suas casas e suas vidas. Meu primeiro contato com esses bairros foi pelos nomes das linhas de ônibus. Na volta da escola, do centro para a zona sul onde morava, eu costumava embarcar no "Jardim Miriam", ou no "Vila Joaniza". Eram linhas com nomes despretensiosos. Nomes simples, de gente simples.
No sentido inverso, para ir da zona sul ao centro, os nomes das linhas de ônibus eram mais pomposos: Largo General Osório, Duque de Caxias, Praça do Patriarca... Nomes que saltavam dos livros de história.
Àquela altura, eu não sabia direito quem era o tal Patriarca. Sabia que o nome dele era José Bonifácio, sabia que tivera um papel importante na Independência brasileira. E só.
Muitos anos depois, quando fui estudar História na Universidade, é que aprendi no curso da professora Maria Odila qual tinha sido o papel de Bonifácio.
Hoje em dia, se me pedem pra fazer uma lista dos brasileiros mais importantes eu incluo o Bonifácio.
E o curioso: natural de Santos, ele nem se via como um brasileiro, mas como um português nascido na América.
Mineralogista, homem de ciências nessa terra de fazendeiros e bacharéis, Bonifácio estudou em vários países da Europa antes de se fixar em Lisboa, onde foi funcionário do Estado português.
Quando Napoleão invadiu Portugal e a Coroa mudou-se para o Rio, em 1808, Bonifácio permaneceu na Europa, e lutou contra os invasores.
Só voltou ao Brasil em 1819.
Homem culto e respeitado, foi ele que ajudou a cimentar a idéia de um Império brasileiro - que mantivesse a unidade territorial. Era um projeto original, na comparação com os vizinhos de origem espanhola. Projeto que recebu uma mãozinha da história, com a vinda da corte para o Rio em 1808. Mas tudo isso poderia ter-se perdido...
Bonifácio pensou o Estado brasileiro, comandou o processo ao lado de Dom Pedro I.
Pensou o Estado, mas pensou também a Nação. E essa é sua maior grandeza.
Sim, pouca gente sabe mas Bonifácio era um reformista. Na época em que a maioria da elite brasileira apostou numa independência que mantivesse a estrutura escravista intacta, ele seguiu rumo oposto. Na Consituinte de 1823, Bonifácio pregou a Abolição da Escravatura. Apresentou um projeto corajoso e coerente com esse objetivo. Perdeu.
A Assembléia foi dissolvida pelo Imperador; a elite escravocrata era hegemônica e o Brasil demoraria mais de 60 anos para abolir a Escravidão. Em 1823, Bonifácio já escrevia, em seu projeto à Consituinte:
"que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para o bem de todos."
Nessa frase, Bonifácio respondia aos liberias de araque brasileiros que, àquela altura, defendiam a Independência em nome do "Liberalismo" em moda na Europa; mas defendiam a Escravidão - acreditem - com base no mesmo "Liberalismo": abolir a escrvidão era atacar o sacrossanto direito à propriedade.
Bonifácio não era um revolucionário. Era só um reformista. Moderadíssimo. Nem republicano ele era. Defendia Monarquia Constitucional. Ainda assim, assustou os senhores dessa terra.
A historiadora Miriam Dolhnikoff organizou um livro muito interessante com os textos de Bonifácio. Chama-se "Projetos para o Brasil", da Companhia das Letras. Livro curto, leitura fácil e saborosa: Bonifácio não era de escrever muito. Deixou importantes anotações, avulsas, organizadas agora pela historiadora.
No livro, numa pequena Introdução, ela traça o perfil de Bonifácio. Interessante notar: o projeto dele para o Estado brasileiro vingou; mas o projeto de Nação foi derrotado.
Bonifácio acabou exilado pelo Imperador - aquele mesmo que ele ajudara a instalar no trono. Voltaria ao Brasil já no fim da vida, para assumir a tutoria de Dom Pedro II. Mas, de novo, parte da Corte entrou em choque com ele. Bonifácio era uma cabeça perigosa demais, livre demais, para elite tão tacanha.
Bonifácio isolou-se na Ilha de Paquetá, e morreu em 1838.
Sobre ele, escreveu a historiadora Miriam Dolhnikoff:
"Unidade, centralização e monarquia, em plena América fervilhante de idéias federalistas e republicanas: essas foram as conquistas da elite que se afirmava com a Independência, no interior da qual Bonifácio desempenhou um efêmero mas importante papel de liderança. Entretanto, é como derrotado que escreve no exílio. Seu projeto de nação e as reformas defendidas como único meio de construir na América um país moderno e civilizado não haviam se concretizado".
José Bonifácio morreu derrotado. Anos depois, a elite brasileira reconstruiu o mito do "Patriarca" da Independência. Era preciso ter um herói ilustrado para dar um verniz civilizado à nossa independência, feita aos tropeções.
Foi assim que José Bonifácio, o "Patriarca", virou nome de linha de ônibus, virou nome de praça...
Para a História oficial, ele é apenas isso: o "Patriarca". Não é bom lembrar que Bonifácio foi exilado, e morreu isolado por defender o fim da Escravidão numa terra de senhores que, até hoje, negam o racismo e tentam apagar a memória de nosso vergonhoso passado.
Viva Bonifácio, o Abolicionista. É desse que o Brasil precisa - ainda hoje.
Quem se interessar pela figura de Bonifácio pode ler também:
- "José Bonifácio, Projetos para o Brasil", capítulo do livro A IDÉIA DE REVOLUÇÃO NO BRASIL - E OUTRAS IDÉIAS, de Carlos Guilherme Mota (editora Globo); ou
- o volume escrito por Otávio Tarquínio de Sousa, sobre Bonifácio, para a coleção OS FUNDADORES DO IMPÉRIO (livro esgotado, mas fácil de encontrar nos sebos).
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